terça-feira, 1 de agosto de 2017

O lado cabalístico do Apocalipse


Por Kadu Santoro

A ortodoxia da Igreja, blindada em seu status quo de natureza imperialista, produzira ao longo de sua trajetória inúmeros conceitos errôneos e distorcidos a respeito da narrativa dos livros do Gênesis e do Apocalipse (o alfa e o ômega). Todos esses conceitos distorcidos são consequência da ideia de acontecimentos singulares em um passado remoto que teria gerado uma criação fixa, estática, que por sua vez conduzira à ideia do acontecimento singular de um Apocalipse no futuro, que também tem caráter estático e fixo. Na visão cabalística do cristianismo gnóstico, o ato da Criação (Gênesis) e o da Revelação (Apocalipse) representam um acontecimento único contínuo, e não um evento singular do passado ou do futuro e, portanto muito menos estático ou fixo em determinado período. Dessa forma, a Criação está ocorrendo a todo instante, agora, assim como o Apocalipse, em todo o seu encanto e horror.

Não pretendo me estender em teologia e muito menos na história da igreja, porém, a respeito do livro do desvelamento (Apocalipse), segundo a visão de João evangelista, teria sido profecia referente a Roma, onde essa assumiria o controle do cristianismo, e ao desenvolvimento da ortodoxia, que tentaria com isso destruir o espírito vivo da Gnose Cristã. Dessa forma, a principal profecia do livro do desvelamento já teria ocorrido, na medida em que o conhecimento esotérico do cristianismo gnóstico encontra-se quase que totalmente perdido no ocidente. E é nesse sentido que posso dizer que o “espírito do anticristo” e a “grande besta” conseguiram com êxito realizar muito bem a sua missão imperialista. Porém, um livro profético é muito mais do que as situações históricas com suas circunstâncias e acontecimentos que prediz, e a profecia em si não encontra-se “gravada na pedra”. Assim, como revela acontecimentos que podem de fato ocorrer, a profecia revela também princípios cósmicos com suas leis imutáveis do universo. Desse modo, a relevância de um livro profético transcende qualquer acontecimento real que descreve, pois todos os eventos semelhantes que acontecem no mundo estão sujeitos aos mesmos princípios cósmicos.

O livro do Gênesis se incumbe da descrição do processo da criação como uma in-volução, ou seja, do processo de densificação da matéria no tempo e espaço. Já o livro do Apocalipse descreve o ato criativo como uma e-volução. Explicando Cabalisticamente, no nível de Da’at, essa involução e evolução (contração e retração) são entendidas como parte do mesmo momento simultaneamente. Isso se dá devido ao fato da fragmentação dos recipientes (Klipots) de um universo superior, necessária para a criação do universo inferior segundo o processo de criação, também chamado a descida do relâmpago. O mesmo acontece com a “destruição” relatada no livro do Apocalipse. Salvo no Apocalipse, é o universo inferior que é fragmentado proporcionando a unificação com o universo superior.

As mensagens às sete igrejas correspondem a uma fragmentação do mundo de Assiah (mundo da ação) para a unificação de Yetzirah (mundo da formação). A primeira onda de destruição que vem antes dos mil anos de paz na terra, representa uma fragmentação em Yetzirah para a unificação com Briah (mundo da criação), e o conflito final, depois dos mil anos de paz, representa a fragmentação de Briah para a unificação com Atziluth (mundo da emanação), que dentro da visão cabalística cristã, essa quádrupla unificação representa a ação redentora do processo da criação dada por completa, logo o livro do Apocalipse consiste em um tratado cabalístico.
Esse mesmo processo de fragmentação em um nível inferior para produzir uma unificação em um nível superior, se repete no mistério da crucificação e ressurreição, onde o rompimento do corpo (recipiente) nos mundos de Assiah, Yetzirah e Briah permitem a revelação do corpo de luz (corpo glorificado segundo os cristãos). Dessa forma, a luz é baixada no evento alegórico de Pentecostes (forma unificadora) conforme o livro de Atos, abrindo assim caminho para a fragmentação total dos Klipots, favorecendo com isso à unificação da luz restaurando a unidade cósmica.

A primeira vinda do Cristo, consiste no advento do indivíduo, enquanto a segunda vinda (Parusia), descrita no livro do Apocalipse representa essa mesma manifestação, só que agora no âmbito coletivo da humanidade, que podemos chamar do grande despertar da consciência planetária, onde a humanidade deveria elevar-se a um patamar vibratório mais elevado de consciência, semelhante ao que Jung chama de processo de individuação.

Esse processo de evolução da alma-ser em direção à consciência suprema (chamada pelos judeus e cristãos consciência messiânica), trata-se de um processo ativo individualmente e coletivamente – uma evolução do ser comum tripartido (mental - Neshamah, emocional - Ruach e instintivo - Nephesh) ao ser supra mental ou luminoso passando por Chaiah chegando a Yechidah (níveis transpessoais).

Através da observação da natureza, podemos adquirir conhecimento desse processo evolutivo porque uma nova espécie de ser sempre provém de uma espécie anterior, e o desenvolvimento de uma nova espécie sempre ocorre interiormente e de forma oculta antes de ser manifesto exteriormente, e o mesmo acontece com o ser supra mental, emergindo do nosso estado atual (sono), correspondente ao crescimento ou transformação que ocorre interiormente em oculto, porém, esse desenvolvimento que acontece conosco é bem diferente da evolução de novas espécies na natureza, porque todos os desenvolvimentos anteriores ocorreram através de uma evolução inconsciente, ou seja puramente instintiva; nessa evolução, a espécie do ser não era um agente consciente, a natureza realizara tudo em um nível instintivo. Já o desenvolvimento do ser supra mental, só pode se dar por meio de uma evolução consciente do ser mental, ou seja, do ser humano atual.

A grande diferença entre o ser humano e os demais seres criados é que esse possui a capacidade de desenvolver-se conscientemente e de evoluir para uma nova condição de ser. Essa nova condição, ou paradigma é prefigurada na imagem arquetípica dos grandes avatares iluminados (Cristo, Buda, Krishna, Asclépio, Mithra, Hórus entre outros) presentes em todas as culturas do planeta.

O mais impressionante, é o fato de que atualmente, certamente mais do que em qualquer outra época passada da história humana, possamos compreender como uma raça de seres inteligentes, dotados de uma consciência arbitrária e temporal está a caminho da autodestruição por não querer atuar a partir de um nível superior de consciência. A esse princípio inerente autodestrutivo, podemos simbolizar com a ação de forças malignas (presentes dentro de nós também). No livro do Apocalipse, essa força contrária, ou também podemos chamar de um arrasto kármico planetário para trás, é denominado de a “grande besta”, ativada pelo “anticristo”. E quem seria esse anticristo? Nada mais do que aquele que realiza um caminho contrário ao de um Cristo ou de um Buda ou de qualquer avatar correspondente a sua cultura, que ao invés de mergulhar diretamente no que é, fica cogitando a respeito do que deveria ser. Logo, podemos dizer que o anti-cristo é um anti-Ser. Por exemplo: seguir uma religião consiste em um movimento anticristo, pois nega a experiência individual experimentada por um Cristo. Porém, acabamos por vez acreditando que o anticristo é alguém que se rebela contra a Igreja, mas o anticristo na verdade é aquele que toma uma atitude contrária ao Ser, esse que não consegue encontrar a vida no Agora e fica planejando para o futuro. Em outras palavras, o pensamento guiado pelo intelecto e o ego é que é o autêntico anticristo. Qualquer um pode ser um anticristo sem ter nunca se aproximando de nenhuma religião. Porque o anticristo tipifica o movimento da inconsciência humana. A Parusia, ou a volta de Cristo consiste simbolicamente no retorno de mais uma oportunidade de se atingir o Ser fora das garras da tradição, e é por isso que a maioria das pessoas estão abandonando as religiões com suas tradições e dogmas, porque toda moral religiosa está perdendo o sentido ser.

Pegamos um exemplo nas escrituras do Novo Testamento, onde Pedro, prestes a ser executado declara: “Não sou digno de morrer como meu senhor!” e acaba sendo crucificado de cabeça para baixo. O que parecia ser um ato de humildade de Pedro, na verdade não era, pois em seus talvez oitenta anos de vida andando no sentido contrário, para fora de si mesmo, seria possível que ele acabasse adquirindo um pouco de consciência devido ao fato de tanto errar. E foi como ele concluiu na hora de sua morte, que, de fato, ele não era um homem de Ser como Cristo. Portanto, não sendo um homem de Ser Crístico (desperto), ele se negava a morrer como um que fosse. Esse foi com certeza o momento mais autêntico de Pedro, em que ele conseguira realmente aceitar a sua própria realidade, pois antes vivia no sono e na hipocrisia, e isso remete simbolicamente morrer com a cabeça para baixo, voltada para a terra (Malkhut), pois sempre vivera nos pensamentos daqui e não descobriu o seu Ser.

Se levarmos esse quadro para a Igreja de Pedro (Católica Romana), ela tem essa característica, é algo desenvolvido perifericamente, possuindo uma hierarquia quase militar, onde alguém é mais poderoso ou menos importante que outro alguém. Assim, Jesus O Cristo é visto como alguém que encontra-se figurativamente sentado à direita de Deus e Pedro possui as chaves de acesso a este mundo metafísico, onde na verdade, tudo isso já fora previsto e imaginado pelo pensamento religioso.

Percebendo que Pedro é um moralista judaizante, que não possui nenhuma conexão com o Ser, Cristo decide testá-lo perguntando: “Pedro, quem tu dizes que EU SOU?” e Pedro responde: “É como um anjo na retidão!”, e essa fala demonstra como Pedro não se encontrava em contato com o Ser, mas sim, o que pensava que deveria ser. Somente um homem que não tem a experiência consigo próprio, com seu Ser em essência poderia dar uma resposta dessa a um iluminado. Na verdade, ele ouvira de Jesus, o que O Cristo estava perguntando, o que o Ser está indagando. No entanto, ele responde como um homem intelectual mental e não de Ser. Um homem de Ser não diria nada, pois um homem de Ser saberia que essa pergunta é um truque do pensamento. Um Sócrates ou um Buda não cairia numa pergunta dessas, pois diria que só sei que nada sei, e isso demonstrava como Sócrates era um homem de Ser, e não apenas um filósofo como os outros que viviam dando voltas e mais voltas no intelecto. Os mestres Zen também apreciam muito usar esses truques linguísticos com seus neófitos, e isso também nos mostra como Jesus se aproximara do pensamento Zen, pois o Zen consiste em um estado concreto de consciência onde o mistério e a beleza da vida são percebidos simultaneamente sem mediações de palavras ou conceitos.

A respeito do grande conflito final no livro do Apocalipse, chamado Armagedon, na verdade representa a luta dentro de nós mesmos contra a inclinação violenta e contrária da nossa natureza bestial, onde essa sendo encarada de forma coletiva, podemos denominar de a grande besta, e isso só se converte em conflito externo quando não solucionamos interiormente esse conflito. O egoísmo, a ganância, a cobiça e o temor-ódio são algumas manifestações primárias dessa inclinação maligna, que nos levam a explorar, a oprimir e a cometer todo tipo de violência entre nós mesmos, e que geram a grande violência das guerras. Ao invés de ser um só acontecimento, o Armagedon é uma tendência cada vez mais intensa e radical desse conflito interno externalizado no mundo. Desse modo o juízo não vem de fora, mas de dentro de cada um e aí escolheremos o caminho da vida ou o da morte.

Dentro do esquema arquetípico da Árvore da Vida, a questão é a seguinte: se podemos nos elevar ao nível de Tipheret ou se vamos permanecer presos aos sephirots inferiores, isolados da presença do EU SOU dentro do nosso coração. Para isso, é preciso dizer algo em relação às nossas expectativas diante de tempos potencialmente escuros, pois esses são sem dúvida os melhores momentos para nos elevarmos de forma consciente, ou seja, conscientes da realização espiritual de Da’at – as coisas se manifestam como esperamos que aconteçam.

O terror do Apocalipse surge de nossa resistência ao despertar da consciência crística – da nossa incapacidade para superar o egoísmo, a cobiça e o temor por meio do cultivo da paz, da esperança e do amor. Assim, diante de tempos de grandes tribulações, é uma visão de esperança a que os despertos devem ter, não apenas para si próprios, mas para com toda a humanidade. Isso  conduz a um esclarecimento e um entendimento a respeito da alegoria da segunda vinda na visão dos gnósticos, que consiste no início do despertar da consciência messiânica em grandes grupos de seres humanos. A segunda vinda não deve ser vista literalmente como um retorno físico de Jesus Cristo, mas como a consciência messiânica despertando coletivamente na humanidade, promovendo o renascimento de uma nova era.

Para finalizar, segundo a Cabala, do Gênesis ao Apocalipse, toda essa jornada é a representação metafórica e alegórica (muitas vezes utilizando-se de eventos históricos) da jornada de cada um de nós através do autoconhecimento até o despertar da nossa verdadeira essência, que é Luz.

Bibliografia:
MALACHI, Tau – Cristo Cósmico – A Cabala do Cristianismo Gnóstico – Ed. Pensamento.
OUSPENSKY, P. D. – Fragmentos de um ensinamento desconhecido – Ed. Pensamento
TRINDADE, Rammyl – Jesus não era cristão – Ed. Besouro Box
LÉVI, Éliphas – Os mistérios da Cabala ou A Harmonia Oculta dos Dois Testamentos – Ed. Pensamento

HALEVI, Z’ev Bem Shimon – O Caminho da Cabala – Ed. Ágora